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Foto do escritorSusan Chou

dane-se as lanterninhas

Em uma dessas andanças por aí, fui parar na Itália. Cheguei pela rodoviária, e ia encontrar uma amiga na estação ferroviária central, que ficava a 1h30 andando. Decidi andar porque quando se está viajando a gente tira o pique não sei de onde e faz nosso corpo acompanhar. Olhando o trajeto no mapa, eu ia passar meio perto da Chinatown da cidade. Sem pensar muito, desviei da rota e fui direto pra lá. Enquanto caminhava, ficava pensando, será que não é ser muito limitada ir sempre atrás dos comércios asiáticos em toda cidade ocidental que eu vou? Por mais que eu goste de conhecer lugares diferentes, experimentar comida nova, aprender sobre a cultura local, eu dificilmente me vejo mais realizada do que num comércio asiático no ocidente. É legal se sentir o público alvo do estabelecimento.


Chegando perto comecei a ver as famosas lanterninhas vermelhas penduradas por aí. Acho que cheguei. Será que na China tem tanta lanterninha assim mesmo? Comecei a olhar pros lados, procurando não sei o que, mas encontrando nos olhares cruzados com os asiáticos que passavam por mim. É aquele olhar e ser olhado, às vezes um sorrisinho, as vezes só um sentimento. Na minha cabeça eu tava cumprimentando todo mundo. Cheguei numa vendinha de zongzi lá pelas 11h da manhã, morrendo de fome. Eu tava decifrando o cardápio metade em italiano metade em chinês quando o dono do lugar veio falar comigo. “Nihao!”. Puts, que euforia. Ele acha que eu tenho a cara de quem sabe pedir, de quem sabe o que tá fazendo, de quem fala a língua dele. Saboreei um pouco o gosto dessa pressuposição. Depois encarei a realidade de que meu chinês é aleijado, e perguntei — em chinês, num misto de orgulho e vergonha — se ele falava inglês. Ele não ligou. Falou que não e continuou falando em chinês comigo. Tropeçando 3 a cada 2 passos, consegui me comunicar e pedi meu zongzi. Saí rindo e me lambuzei toda com aquele arroz grudadinho.


As lanterninhas continuaram por mais um pouco, assim como os cumprimentos invisíveis com os passantes. Conforme se rareavam, esses olhares eram substituídos pelos dos outros, dos ocidentais. Não era uma regra geral, mas notei que muitas vezes os olhares deles vinham na minha direção, batiam e voltavam. Eu ficava um pouco confusa, parecia ter uma muralha enorme entre a gente. Uma muralha feita de lanterninhas vermelhas. Percebi que ela tem ou o efeito de te deixar invisível, ou o totalmente oposto de chamar uma atenção desproporcional. A primeira é fácil de descrever, a pessoa te vê, e tanto faz. Você não está no ranking das melhores notas, não está na lista das meninas mais bonitas, porque você simplesmente está numa lista separada para tudo, onde te colocam com todas as outras pessoas amarelas. Você é como elas, a mesma coisa, é claro que vai ser assim ou assado, todos vocês são assim. O segundo já costuma ser mais bem visto, a pessoa te olha, fala que é legal o que você come, e veste, às vezes até faz igual, mas mesmo assim a pessoa não te vê, porque ela tá ocupada demais falando pra você como adora as lanterninhas vermelhas que ela tá vendo no seu lugar, e no lugar de todas as outras pessoas amarelas.


Incomodada com isso, fiquei pensando nas vezes que eu ouvi coisas que me fizeram sentir a presença robusta dessa muralha. Que se evidencia pela sensação que dá de que a gente tem que escalar quilômetros para se fazer conhecido por quem é, e não pelo que inventaram sobre pessoas com o rosto ‘igual’ o seu. Um desses grandes momentos de contemplação da muralha foi quando conversava sobre garotos com uma amiga do colégio. Ela disse que nunca ficaria com um menino asiático. A justificativa foi a melhor parte: “nada contra, é só que a minha vagina não escolheu”. A maneira como a vagina dela achava que conhecia todos os meninos asiáticos por ter visto um ou outro na vida era impressionante. As manchetes de jornal costumam reiterar essa ideia. É engraçado como quando os Estados Unidos fazem alguma coisa, a notícia vem nos avisar que “a casa branca decidiu” “o presidente Biden falou” e aí quando é na China, me vem “os chineses decidiram” “alguma coisa foi causada pelos chineses”. Como se eles se coordenassem em uma só mente, a massa unificada dos 1,4 bilhões de habitantes que pensam tudo igual e que minha vagina não escolheu.



E daí fui percebendo que aquele sorrisinho e aquele aceno de cabeça com os outros asiáticos não acontecia porque eu me sentia parecida com eles, como eu imaginava. Era justamente o contrário. Acontecia porque a gente era totalmente diferente, e entre nós, a gente podia ser. Eu me sentia reconhecendo, a cada aceno de cabeça, que atrás da muralha que colocaram neles tinha qualquer coisa que eles quisessem ser. Tinham pessoas absurdamente diferentes, complexas, espalhafatosas, gênios em matemática, ruins em matemática, guerreiras, preguiçosas, tudo! O que eu achei que era um sorriso por ter a impressão de conhecer a pessoa, era na verdade por saber, enfim, que não conheço nada dela ao olhar os traços asiáticos no seu rosto. De igual, temos apenas as lanterninhas.


Percebi que isso me atrai como experiência de cidade. O convívio com esses outros que são considerados o eu, em um espaço que apoia o nós. É a tangência de dois mundos aos quais não pertenço totalmente, formando um a que pertenço, e tomando a forma de um tecido urbano. É uma bolha de cidade mista, que é o refúgio dos estrangeiros ao quadrado: dos que nasceram lá e moram aqui, e dos que nasceram aqui e tem cara de lá.


Só que o problema é que morando no ocidente, eu não consigo viver o tempo inteiro nesse refúgio, além de não precisar e não querer. Se esse tal olhar de conexão traz o sentimento de pertencer, de poder ser quem se é, o seu contraponto não é um despertencer e se acanhar. O resto da cidade também é feito para nós. Eu acho que o seu contraponto nem é um outro sentimento, mas é uma ideia. É ter o direito de estar onde se está, e acreditar nisso. Tem gente que tem o privilégio de pertencer ao lugar onde está. Mas para aqueles que não têm, lhes resta se agarrar à ideia de que têm o direito de estar lá, e de que é a partir desse lugar, independente do olhar que se lhes dirige, que vão conquistando seu espaço.




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