Antes de você nascer, seus pais viveram uma vida que você nunca conseguiria imaginar, escalaram montanhas e te soltaram nos picos. Aguentaram a virada brusca na história da sua família, e você nasceu numa paz. Aparente paz. Suas tempestades são outras, sua pele não rasgou, suas cicatrizes foram herdadas.
Nascer em um país diferente dos seus pais é acordar para fazer diplomacia e dormir fazendo controle de fronteiras. O pior é que nem sempre é com eles. São fronteiras dentro de você, em que você é o interessado das duas partes mas nunca chega a um consenso.
Você é fluente na língua sem palavras, entende o olhar torcido, a fruta descascada na mesa, a sopa de galinha quando você está doente. Entende também que “nada mal” é excelente, que suas conquistas não vão te render elogios, mas todos os amigos dos seus pais vão ficar sabendo. Mas mesmo assim você nasceu no Brasil. Na terra do elogio, do eu te amo, da minha flor, meu amor, minha vida.
Não é que você é quieta. Ou que não tem opinião. É que antes das palavras, te ensinaram a usar gestos, atitudes, distâncias, que têm significados próprios na sua casa. Mas que fora dela, você não sabe.
Seus avós e seus pais pularam de casa em casa, como ratos, indesejados pela cidade, de buraco em buraco procurando um lugar para se estabelecer. Em cada um dos lugares onde moraram, deram o sangue, coletiva, silenciosa e persistentemente. Os mais velhos trabalham, é simples. Não há outra opção. Seus olhos estão nos mais novos. Que por maior que seja a dificuldade, não ajudam a ganhar dinheiro. Eles só estudam, também é simples. Entre as gerações, foi um acordo mudo, inteiramente escrito nas entrelinhas, baseado na imitação e na coletividade. Já você, desfruta. É simples. Os tais ratos? Você nunca viu. Tudo o que eles fizeram foi para poder te dar o que você nasceu tendo.
Nos seus estudos, uma pressão. Expectativas, 10 sem elogios, 9,9 não é 10. Como poderia ser diferente? Foi o que eles viveram, foi como lhe deram seus privilégios. Ouso dizer ainda que se tirassem toda a pressão de você, todas as expectativas veladas, os olhares decepcionados, você continuaria do mesmo jeito. Porque uma mistura mais ou menos equilibrada de gratidão e culpa te move. Ela já está dentro de você, e não te deixa aceitar a mediocridade, não te deixa se sentir suficiente. “Eles fizeram tanto, e eu?”
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